Drogas psicodélicas podem ter reduzido trauma de israelenses em ataque do Hamas a festival de música, diz estudo
Essa é a primeira vez que cientistas conseguiram estudar um evento de trauma em massa, onde um grande número de pessoas estava sob a influência de drogas. Michal acredita que uso de MDMA pode ter a ajudado durante ataque do Hamas em festival
Oren Rosenfeld / BBC
À medida que o amanhecer se aproximava em 7 de outubro de 2023, muitos dos participantes do festival de música Nova, perto da fronteira de Israel e Gaza, usaram drogas recreativas ilegais, como MDMA ou LSD.
Centenas estavam chapados quando, logo após o nascer do sol, homens armados do Hamas atacaram o local.
Agora, neurocientistas que trabalham com sobreviventes do festival dizem que há sinais iniciais de que o MDMA — também conhecido como ecstasy — pode ter fornecido proteção psicológica contra traumas.
Os resultados preliminares, atualmente sendo revisados por pares para publicação nos próximos meses, sugerem que a droga está associada a estados mentais mais positivos — tanto durante o evento quanto nos meses seguintes.
O estudo realizado por cientistas da Universidade de Haifa, em Israel, pode contribuir para o crescente interesse científico em como o MDMA pode ser usado para tratar traumas psicológicos.
Acredita-se que essa seja a primeira vez que cientistas conseguem estudar um evento de trauma em massa, onde um grande número de pessoas estava sob a influência de drogas psicoativas.
Homens armados do Hamas mataram 360 pessoas e sequestraram dezenas no local do festival, onde 3,5 mil pessoas estavam se divertindo.
"Tivemos pessoas se escondendo sob os corpos de seus amigos por horas sob efeito de LSD ou MDMA", disse o professor Roy Salomon, um dos líderes da pesquisa.
"Há rumores de que muitas dessas substâncias criam neuroplasticidade [adaptação do cérebro a situações novas], então o cérebro fica mais aberto a mudanças. Mas o que acontece se você passar por essa neuroplasticidade em uma situação tão terrível — vai ser pior ou melhor?"
Cerca de 3,5 mil pessoas estiveram no festival Nova quando o Hamas atacou
BBC
A pesquisa rastreou as reações psicológicas de mais de 650 sobreviventes do festival. Dois terços deles estavam sob influência de drogas recreativas — incluindo MDMA, LSD, maconha ou cogumelos alucinógenos — antes de os ataques acontecerem.
"O MDMA, e especialmente o MDMA que não foi misturado com mais nada, foi o que mais protegeu [contra traumas]", concluiu o estudo, de acordo com Salomon.
Ele disse que aqueles que tomaram MDMA durante o ataque pareceram lidar muito melhor mentalmente com os traumas nos primeiros cinco meses, que é quando o cérebro processa a maior parte dos eventos.
"Eles estavam dormindo melhor, tinham menos sofrimento mental — estavam melhor do que as pessoas que não haviam tomado nenhuma substância", disse ele.
A equipe acredita que os hormônios pró-sociais desencadeados pela droga — como a ocitocina, que ajuda a promover o vínculo — ajudaram a reduzir o medo e a aumentar os sentimentos de companheirismo entre os que fugiram do ataque.
Mais importante que isso, segundo os pesquisadores, é que o uso da droga parece ter deixado os sobreviventes mais abertos a receber amor e apoio de suas famílias e amigos quando voltaram para casa.
A pesquisa é limitada apenas àqueles que sobreviveram aos ataques, o que torna difícil determinar com certeza se medicamentos específicos ajudaram ou prejudicaram as chances de fuga das vítimas.
Mas os pesquisadores dizem que muitos sobreviventes, como Michal Ohana, acreditam firmemente que o uso das drogas ajudou a protegê-las — e afirmam que essa crença por si só facilita na recuperação.
"Sinto como se isso tivesse salvado minha vida, porque eu estava tão chapada, como se não estivesse no mundo real", ela me disse. "Porque humanos comuns não conseguem ver todas essas coisas — não é normal."
Sem a droga, ela acredita que teria congelado ou caído no chão e sido morta ou capturada pelos homens armados.
Sobreviventes que usaram MDMA durante o ataque pareciam lidar melhor com o trauma nos meses seguintes, afirma Roy Salomon
Oren Rosenfeld / BBC
Médicos em vários países já experimentaram a psicoterapia assistida por MDMA para Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em um ambiente de teste — embora apenas a Austrália a tenha aprovado como tratamento.
Os países que o rejeitaram incluem os EUA, onde o departamento do governo federal Food and Drug Administration citou preocupações sobre a forma como os estudos foram conduzidos, sobre a falta de benefícios duradouros e sobre o risco potencial de problemas cardíacos, lesões e abuso de substância.
No Reino Unido, o MDMA é classificado como droga de Classe A (as mais perigosas) e tem sido associado a problemas de fígado, rins e coração.
Em Israel, onde o MDMA também é ilegal, psicólogos só podem usá-lo para tratar clientes em caráter experimental.
As descobertas preliminares do novo estudo estão sendo acompanhadas de perto por alguns dos clínicos israelenses que estão experimentando MDMA como tratamento para TEPT após o ataque do Hamas.
Anna Harwood-Gross, psicóloga clínica e diretora de pesquisa do Centro de Psicotrauma Metiv de Israel, descreveu as descobertas iniciais como "muito importantes" para terapeutas como ela.
Atualmente, ela está experimentando o uso de MDMA para tratar TEPT nas forças armadas israelenses e se preocupa com a ética de induzir um estado psicológico vulnerável em clientes quando há uma guerra acontecendo.
"No começo da guerra, questionamos se seríamos capazes de fazer isso", ela disse. "Podemos dar MDMA às pessoas quando há risco de uma sirene de ataque aéreo? Isso vai potencialmente retraumatizá-las. Este estudo nos mostrou que, mesmo que haja um evento traumático durante a terapia, o MDMA também pode ajudar a processar esse trauma."
Dezenas de pessoas foram sequestradas e 360 foram mortas no ataque ao festival
EPA
Harwood-Gross diz que as primeiras indicações do uso terapêutico de MDMA são encorajadoras, mesmo entre veteranos militares com TEPT crônico.
A pesquisa também derrubou antigas suposições sobre as "regras" da terapia — especialmente a duração das sessões, que precisam ser ajustadas ao trabalhar com pessoas sob a influência de MDMA, diz ela.
"Por exemplo, mudou nossos pensamentos sobre sessões de terapia de 50 minutos, com um paciente e um terapeuta", me disse Harwood-Gross. "Ter dois terapeutas e sessões longas — de até oito horas de duração — é uma nova maneira de fazer terapia. Eles estão olhando para as pessoas de forma muito holística e dando tempo a elas."
Ela diz que esse novo formato mais longo está mostrando resultados promissores, mesmo com pacientes que acabam nem tomando MDMA — com uma taxa de sucesso de 40% no grupo placebo.
A própria sociedade israelense também mudou sua abordagem ao trauma e à terapia após os ataques de 7 de outubro, de acordo com Danny Brom, diretor fundador do Centro de Psicotrauma METIV no Hospital Herzog em Jerusalém e uma figura importante no setor.
"É como se esse fosse o primeiro trauma que estamos passando", disse ele. "Eu vi guerras aqui, vi muitos ataques terroristas e as pessoas disseram: 'Não temos traumas aqui'.
"De repente, parece haver uma opinião geral de que agora todos estão traumatizados e todos precisam de tratamento. É uma abordagem errada."
O que mudou, ele disse, foi a sensação de segurança que muitos judeus acreditavam que Israel lhes dava. Esses ataques revelaram um trauma coletivo, ele diz, ligado ao Holocausto e a gerações de perseguição.
Alguns sobreviventes dizem que ainda estão lutando para retornar à vida normal após o ataque
Getty Images via BBC
"Nossa história é cheia de massacres", me disse o psicólogo Vered Atzmon Meshulam. "Como psicólogo agora em Israel, estamos diante de uma oportunidade de trabalhar com muitos traumas que não estavam sendo tratados anteriormente, como todas as nossas narrativas por 2 mil anos."
Trauma coletivo, trauma de combate, drogas psicoativas, agressão sexual, reféns, sobreviventes, colecionadores de corpos, feridos e enlutados — os especialistas em trauma de Israel estão enfrentando um coquetel complexo de problemas dos clientes que agora procuram terapia.
A escala desse desafio de saúde mental se reflete em Gaza, onde um grande número de pessoas foi morto, ferido ou ficou desabrigado após uma guerra devastadora de 15 meses — e onde há poucos recursos para ajudar uma população profundamente traumatizada.
A guerra em Gaza, desencadeada pelos ataques do Hamas às comunidades israelenses em outubro de 2023, foi suspensa em janeiro em uma trégua de seis semanas, durante a qual reféns israelenses mantidos pelo Hamas foram trocados por prisioneiros palestinos em prisões israelenses.
Mas há pouca sensação de ambos os lados de que a paz e a segurança necessárias para iniciar a cura já chegaram.
A trégua expirou no último fim de semana, com 59 reféns israelenses ainda em cativeiro do Hamas. Muitos moradores de Gaza estão esperando, com suas malas prontas, que a guerra recomece.
Enquanto isso, a sobrevivente do festival, Michal Ohana, diz que sente que, com o passar do tempo, alguns esperam que ela tenha superado os ataques, mas ela ainda está afetada.
"Eu acordo com isso, e vou dormir com isso, e as pessoas não entendem", ela me disse.
"Vivemos isso todos os dias. Sinto que o país nos apoiou nos primeiros meses, mas agora, depois de um ano, eles sentem: 'OK, você precisa voltar a trabalhar, voltar à vida.' Mas não conseguimos."
Reportagem adicional de Oren Rosenfeld e Naomi Scherbel-Ball
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